Júlio de Castilhos a Santa Maria
Desliguei até o alarme do celular, sabendo que o dia de hoje seria curto. Acordei com o cheiro do café sendo coado; olho no relógio, 7h em ponto. Enrolei mais e levantei às 8h. Ao sair da pousada, a dona pediu para tirar uma foto minha com a bicicleta e disse que colocaria no jornal da cidade.
A próxima cidade seria Santa Maria, que fica próxima de Júlio de Castilhos a julgar pelas quilometragens diárias que tenho feito. Apenas 65km. Por que não ir mais longe, você pode estar se perguntando. Será que o Daniel está doente? Cansado? Aconteceu alguma outra coisa? Na verdade quem olhou a planilha de planejamento terá percebido que esta distância menor no dia de hoje foi proposital. O motivo é que a partir de Santa Maria, a próxima cidade seria Rosário do Sul, mais 138km. Sem nada no meio: nem hotéis, nem lanchonetes, motéis, postos de gasolina. Só algumas casas onde será possível pedir água.
A estrada a partir de Júlio de Castilhos estava muito boa, ajudando a levantar minha moral e me lembrar que eu estou sim bem em forma e não estou cansado. O problema nos dias anteriores realmente era o asfalto terrível, que torna a viagem muito mais cansativa e estressante. Foi praticamente um passeio de domingo, bem tranqüilo.
Tranquila a estrada estava realmente. Parecia que até os viajantes tiraram o dia de folga. Raramente vi carros ou motos. Até lanchonetes de beira de estrada estavam quase todas fechadas. Me canso de cantar em voz alta sem nunca lembrar a letra direito, e resolvo escutar um pouco de música no celular. Afinal hoje a bateria aguenta, já que o dia vai ser curto. Me divirto e penso que eu deveria comprar mais uma bateria externa para poder ouvir um pouco de som na estrada.
Tive o segundo pneu furado da viagem. Desta vez a causa foi um caco de vidro que ficou alojado entre a borracha e a camada de proteção anti furo, e depois de não sei quanto tempo girando assim, acabou conseguindo chegar na câmara de ar. Apenas dois furos em mais de dois mil quilômetros, nada mal. Porém agora das três câmaras de ar reserva que eu tinha, tenho apenas mais uma sem nenhum furo, porque acabei não consertando nenhuma das duas ainda. Pretendia fazer um remendo à quente em alguma borracharia mas acabei esquecendo, dada a confiabilidade destes pneus. Hoje por ser domingo não achei nenhuma borracharia aberta, e não quis ficar girando procurando.
Lá pelas onze e pouco avistei um posto e já fiquei feliz que poderia calibrar o pneu melhor. Que minha bomba de mão é boa porém tem de fazer muita força para atingir pressões altas. Eu acabo nem tentando para economizar braço. Porém chegando mais perto vi que o posto não funcionava mais, assim como o restaurante anexo. Avistei o que parecia ser uma lanchonete aberta logo do outro lado da rodovia. Resolvi passar lá pra comer algo, já que parecia que restaurantes mesmo, só encontraria abertos em Santa Maria.
Anexo à lanchonete funcionava a "estação rodoviária" do bairro, do qual não lembro o nome. Uma salinha com um balcão e um quadro de giz com os horários dos ônibus anotados. Pendendo do teto, a decoração de natal ainda estava lá um mês depois de passadas as festas de fim de ano.
Na porta da lanchonete, que aqui no sul eles chamam de "lancheria", estava sentado um senhor de cabelos e bigode grisalhos e um tufo de pelos do ouvido que insistia em continuar preto. Olhava o tempo como que ressentido por ele demorar a passar. O cumprimentei com um aceno de cabeça, ao qual ele respondeu.
As opções do pequeno estabelecimento não eram muitas, tampouco tinham boa aparência. Mas é o que tem aberto hoje, pensei. Dei uma olhada na aparência do sorvete e resolvi arriscar. Jamais que eu arriscaria aqueles salgados expostos na vitrine sabe-se lá à quanto tempo. O segundo senhor de idade, atendendo na lancheria, me entrega o sorvete.
Enquanto estou sentado, ouço os dois senhores conversarem. _ Semana passada foi um horror. Não deu nem para pagar as contas. _ É, a crise está feia. _ Fulano começou a vender batata na beira da estrada, você viu? Para ver se consegue fazer mais um dinheiro.
Depois do sorvete compro mais um suco de latinha e água para encher as caramanholas, e sigo.
Mais adiante passo por uma região de serra de floresta nativa muito bonita, já chegando próximo a Santa Maria. Começam as descidas nas estradas sinuosas, com limite de velocidade de 40km/h. De bicicleta eu não obedeço isso nem se tivesse que pagar a multa. No meio do caminho, enquanto estou zunindo serra abaixo, uma placa: "Viver vale a pena". Até pensei em tirar uma foto para vocês, porém decidi que manter o embalo valia mais a pena.
Ao chegar na cidade, resolvo parar no primeiro restaurante de posto no qual passo. Avisto um cara trajado como segurança, careca, barbudo e mal encarado. Fica o tempo todo de pé do lado de um carro velho bem judiado, acredito que um voyage. Imediatamente lembro do Mike de Breaking Bad. O cumprimento fazendo um aceno com a cabeça porém ele só olha, sem retribuir. É de se entender, tendo em vista em estar até de bandana ocultando o rosto.
O restaurante ideal para mim é aquele onde há algum espaço interno onde fica bom de deixar a bicicleta sem atrapalhar ninguém. O segundo melhor é aquele onde há um espaço externo onde consigo prender a bicicleta com o cabo e ficar de olho enquanto estou almoçando. Este restaurante não era nenhum dos dois tipos. Quando estou em uma parada deserta no meio das estradas, freqüentemente deixo a bicicleta encostada sem nem me dar ao trabalho de prender. Porém, áreas urbanas sempre me deixam receoso, especialmente quando se trata de uma cidade média ou grande.
Enquanto olho em volta para decidir se é seguro deixar a bicicleta ali e onde deixar, chega um rapaz e se encosta na parede. Fica ali, aparentemente apenas olhando o celular. Ele não me desperta suspeitas, porém a atitude sim. Penso se devo ir para outro restaurante, consulto o mapa no celular. Decido que o rapaz é muito almofadinha para ser um ladrão e resolvo prender a bicicleta numa grade ali perto, mesmo que fora da vista. Dinheiro, passaporte e celular vão comigo de qualquer forma.
Almoço uma comida bem ruinzinha mas suficiente. Ao sair a bicicleta estava lá como a deixei, sem nenhuma bolsa mexida. Sigo mais um pedaço pela rodovia e me hospedo no hotel de onde agora lhes escrevo esse texto. Dia de descansar bastante para amanhã, que deve ser um dia desafiador.
Este site é basicamente um lugar para descarregar meus pensamentos sobre os mais variados assuntos que me interessarem. No momento se trata de viagens de bicicleta sem marcha e fixa. Você pode falar comigo escrevendo para contato_autor@bus142.net