Bus 142

Destination Nowhere

De Piratininga a Jacarezinho

Para Sempre Dezesseis

Sai do hotel em torno das 7h. A parte da manhã desta dia não teve nenhum evento digno de nota. Ao menos não que eu esteja me lembrando agora. Porém estou escrevendo isto com um dia de atraso, e posso ter esquecido algo. Tenho notado que devido ao cansaço, às vezes tenho dificuldade de lembrar detalhes triviais. Por exemplo, quando alguém pergunta em qual cidade dormi na última noite, tenho de fazer força para lembrar.

Pois dito e feito, comecei a escrever e lembrei de um acontecimento da manhã. Encontrei um homem e uma mulher ciclistas, aparentemente com seus 30 e poucos anos ou menos, parados num trevo. À principio pensei que estavam viajando, porém logo vi que não tinham bagagem alguma. Acho que foi um pouco da minha vontade de conversar com pessoas que estejam fazendo a mesma coisa. Quando os avistei, já fiquei empolgado e imaginando que íamos ter um monte de assunto sobre as estradas. Também há algo romântico em um casal que pedala junto. Apesar de que, eles me disseram, eram apenas amigos. Solange e Jorge, que comentei com ele era o nome do meu pai. E do pai dele também. Me perguntaram o que eu estava fazendo, fizeram as exclamações de assombro às quais já estou me acostumando, e logo segui. Não tenho encontrado cicloviajantes e, quando encontro, era engano.

Nesse dia comecei a sentir de leve que meus joelhos estão um pouco cansados. Nada intenso, mas o suficiente para que eu pare de tentar ir muito além do cronograma planejado e vá mais de leve, tendo em vista que já estou um pouco adiantado. Também foi um lembrete para calibrar os pneus. Eu vou deixando para depois e muitas vezes esqueço disso quando passo por um posto. Às vezes também dou azar da bomba não passar de 70 libras em alguns lugares. O ideal para os meus pneus é ficar em 100 ou 110 libras. Ou acontece do posto estar do outro lado ou distante da pista, e eu ficar com preguiça. Mas calibrar todo dia é muito importante porque a bicicleta anda muito mais leve.

Hoje o dia manteve tempo firme e não muito quente na maior parte do tempo, e consegui escapar das poucas chuvas.

O estado de São Paulo tem em suas rodovias, ao menos nas que passei, muitos "tobogãs", ou seja: um descidão seguido de um subidão. O bom disso é que só no embalo já se sobe metade, e girando mais um pouco para manter a velocidade, lá se foi quase que a subida inteira. Eu estava descendo um desses tobogãs e avistei lá no alto, um senhor empurrando a bicicleta com um pouco de bagagem. Nunca sei quando é um viajante ou só um local levando coisas de um lado ao outro, mas dessa vez desconfiei que era um cicloturista. Na descida o alcancei, pois ele estava em uma bicicleta de pneus grossos que ia bem mais devagar que a minha.

Fui chegando e logo vi pelas bagagens que realmente era um viajante. Um senhor na casa dos 50 anos. Perguntei e ele confirmou: _ Está viajando? _ Sim _ Que legal! Há quanto tempo? _ Ah, já faz bem tempo, desde o começo de janeiro _ Vai para onde? _ Argentina

Infelizmente nesse ponto tive que deixa-lo porque estávamos passando por um posto e eu precisava calibrar meus pneus sem falta. Por coincidência uma chuva começou enquanto eu estava no posto e aí resolvi esperar passar. Coisa de uns 15 minutos, mas o viajante continuou pedalando. Após calibrar, reparei que as dores nos joelhos desapareceram imediatamente. Preciso fazer isso todo dia sem falta.

Fiquei um pouco chateado de não ter conversado mais com o viajante, e sabe-se lá para que lado ele seguia. Estava curioso para saber mais dos seus motivos e sua estória. Farejei que tinha coisa interessante ali. Porém voltei para a estrada e acabei alcançando-o novamente.

Seu nome é Osvaldo, de Goiânia. Tem 53 anos. No passado ele teve um relacionamento com uma argentina natural da cidade de Rosário, que estava em Goiânia na época. Mudaram-se para Rosário e tiveram uma filha. Entretanto, acabaram se separando e seu Osvaldo voltou para Goiânia, onde vive com a irmã. O sogro, fazendeiro bem de vida, disse a ele que criaria a filha e que seu Osvaldo não precisava ajudar financeiramente, apenas que a visitasse. Ele estava indo de bicicleta. Esse é o décimo ano que faz isso. Sua filha estaria com dezesseis anos, segundo ele. Perguntei que idade ela tinha quando se separaram, e ele disse 9 anos. O leitor atento há de notar aí uma inconsistência na matemática, a qual eu também reparei no momento mas não comentei. Trataremos dela mais tarde.

Seu Osvaldo contou que um dia nesta viagem, tinha colocado a bicicleta de ponta cabeça no acostamento, para consertar a câmara de ar. Deixou ali com suas bolsas e tudo, e foi encostar na sombra de uma árvore para descansar. Veio um caminhão e passou por cima, destruiu a bicicleta, celular e mais algumas coisas como barraca. Conseguiu carona e na próxima cidade conseguiu doação uma bicicleta simples, a que estava pedalando agora. Reparo que não tem marcha, igual a minha. Seu Osvaldo não gosta, diz que marcha dá problema. Para piorar seu dinheiro já tinha acabado, e estava vivendo às custas de ajudas das pessoas nos postos de gasolina e postos policiais, onde também pernoita.

O bronze de sua pele curtida pelo sol se confunde com a cor de sua camiseta que pode imaginar-se que um dia foi branca. "Estou precisando lavar", disse ele. Só tenho mais um macacão aqui na bolsa e às vezes preciso entrar em alguma cidade e assim fica feio. Sua pele enrugada pelo sol e pelo vento contam o quanto já ficou exposto aos elementos. Magro, nota-se que não tem comido tão bem quanto deveria. Entretanto seu Osvaldo é a mais autêntica expressão da pura vontade que movimenta seu esqueleto e ossos e parcos músculos. Sem dinheiro, sem recursos, em um momento até sem bicicleta, ele apenas continua indo.

_ Ando gripado, então não tenho mais enfrentado chuva. Começou, eu continuo mas só até achar um lugar para me esconder. Tenho parentes em Porto Alegre, eles me ajudam quando eu chegar lá. Mas até chegar, vai ser duro. Tenho que atravessar o Paraná e Santa Catarina ainda. _ A minha ex mulher proibiu minha filha de ir me visitar. Disse que só depois que ela completar dezoito anos. Até lá ela nem pode sair do país. Mas está quase chegando. Eu já estou cansado. Depois que ela puder, não quero mais fazer isso não. Estou cansado, já estou velho.

Quantos dentre nós tivemos um pai ausente, o que pensar de um exemplo como esse? Seu Osvaldo percorre mais de cinco mil quilômetros contando ida e volta, todo ano, para ver sua filha. Qual era mesmo a desculpa que seu pai dava para não te ver?

Estava chegando o posto onde seu Osvaldo ia pernoitar, e uma descida que eu queria aproveitar pois ainda tinha um tanto para pedalar no dia. Ele tinha feito a cota dele do dia, 70km. Naquela bicicleta de pneus grossos, com a idade dele, sem comer direito, é no mínimo admirável. Então paramos para nos despedir. Tiro fotos. Deixo algum dinheiro com ele, que chega a ficar emocionado. Até abre a carteira para me mostrar que só tinha uma nota de dois reais, e que tinha sido achada ainda. Me mostra também um artigo impresso que escreveram sobre ele. Tiro foto do artigo para ler mais tarde.

Passo por Ourinhos, cujo asfalto no entorno da cidade é terrível, talvez pelo trânsito de tratores para as plantações que a rodeiam. Cruzo a fronteira com o estado do Paraná e chego à cidade de Jacarezinho. O único restaurante que parece estar aberto às 19h é o do Eduardo, servindo um bufê árabe às vontade naquele dia da semana. O dono calha de ser um ciclista, praticante de triatlo, e conversamos bastante a respeito. Me dá várias dicas sobre o caminho que vou pegar a seguir, e nos adicionamos no facebook.

Já no hotel, olho a foto do artigo e consigo localiza-lo na internet. Aí então que reparo melhor na inconsistência de datas. O artigo é de 2015, ou seja, dois anos atrás. Seu Osvaldo me disse que esse era o décimo ano, e quando entrevistado para o artigo disse que fazia isso desde 2007. Até aí tudo perfeito. Entretanto ele disse que quando se separou a menina tinha 9 anos. Sendo assim, esse ano ela faria 19. E de fato, na entrevista de 2015 ele dizia que ela tinha 17. Só que ele me disse hoje, 2017, que ela tinha 16. O que houve?

Poderia imaginar-se que a estória fosse inventada para gerar pena e fazer as pessoas ajudarem. Entretanto, não havia como não acreditar na pura determinação e força de vontade no rosto daquele senhor esquálido. Além disso, se fosse para inventar uma estória triste, há muitas outras maneiras melhores e mais fáceis que ficar andando de bicicleta.

Em 2016, Iasmin teria feito 18 anos. O que teria acontecido, e o que teria levado seu Osvaldo a continuar e até mentir a idade dela? Iasmin cresceu e de menina deve ter se tornado mulher. Teria um namorado agora? Talvez não veja mais seu pai como um herói, como quando criança. Será que quando chegou a idade em que poderia visita-lo, Iasmin não quis? Seu Osvaldo então resolveu continuar visitando enquanto suas pernas aguentassem. Em sua cabeça ela sempre será aquela menina que o via com herói. O que será que acontecerá ano que vem? Será que seu Osvaldo continua visitando? Quando perguntarem qual a idade de sua filha, o que ele responderá? A verdadeira resposta para essas perguntas você só descobre se encontrar com seu Osvaldo de bicicleta na rodovia, porque ele não tem email, facebook, strava, nem celular. Entretanto arrisco o palpite que, para seu Osvaldo, Iasmin sempre terá dezesseis.


Este site é basicamente um lugar para descarregar meus pensamentos sobre os mais variados assuntos que me interessarem. No momento se trata de viagens de bicicleta sem marcha e fixa. Você pode falar comigo escrevendo para contato_autor@bus142.net