Bus 142

Destination Nowhere

São Carlos a Piratininga

"Rather than love, than money, than fame, give me truth." (Henry David Thoreau)

Pela primeira vez na viagem acordei com o despertador às 5h, ao invés de antes dele tocar. Tomei rapidamente o café da manhã servido pelo hotel a partir das 6h. Em menos de meia hora já estava na estrada. Tempo nublado, fresco quase frio, com sereno gentil que não chega a molhar foi o tempo na parte da manhã. Muito agradável para pedalar.

Ao meio dia já tinha pedalado 100km e parei no primeiro restaurante que avistei à beira da estrada em Jaú. E que restaurante! Ao pedir para a moça do caixa parabenizar o pessoal da cozinha, fui informado que era a mãe dela. Percebe-se ser um negócio familiar levado com amor. Talvez tenha contribuído para isso a minha fome, já que esse dia eu não tomei dois cafés da manhã como vinha fazendo. Não senti mais necessidade; provavelmente isso é o corpo adaptando. Mas não foi apenas pela fome. A comida era realmente boa e bonita.

Enquanto almoçava, tive a grata surpresa de saber que um ciclista de São Carlos tinha ficado sabendo de minha viagem e entrado em contato para me oferecer para ficar em sua casa. Infelizmente, já tinha saído de sua cidade quando vi a mensagem. Mas é agradável saber que outros ciclistas, cicloviajantes ou aqueles que sonham um dia o ser, se dispõe assim para ajudar os colegas que já estão vivendo o sonho.

Depois do almoço choveu sem muitas paradas até a hora de chegar no hotel em Piratininga. Fiquei feliz ao ver que havia um restaurante ao lado do hotel. Numa viagem com esse ritmo, tudo que o cicloturista quer no final do dia é comer, tomar banho, lavar roupa e dormir. De preferência tudo num lugar só. Era uma pousada do tipo "chalé". Basicamente a diferença de um hotel normal é que se estiver chovendo você se molha quando vai da recepção para os seus aposentos.

A recepcionista perguntou de onde eu estava vindo de bicicleta: _ De Brasilia _ Mas Brasilia, Brasilia mesmo? A pergunta dela era porque há uma cidade perto dali chamada Brasília Paulista. _ Sim, da capital do país. _ Ara capaaaiz memo _ Verdade! _ E vai pra onde? _ Para o Uruguai. _ Você está falando sério mesmo? A cara de incredulidade dela era engraçada. No começo da viagem as pessoas que me perguntavam não acreditavam que eu chegaria no Uruguai. Agora já estou longe o suficiente que já fica difícil acreditarem que vim de Brasília mesmo.

Às 19h, o jantar no restaurante ao lado. Entrei e tinha uma fila de umas 150 pessoas! Todas portando um crachá com seu nome, e vestindo roupas não iguais, mas estranhamente parecidas. Como se estivessem todos seguindo um código de vestimenta comum. Calça e camisa social, sendo a camisa na maioria de tons de azul e cores próximas. Todos muito barulhentos. Olhei os pratos do buffet, e não havia muita opção, era basicamente uma refeição padronizada. Já estava cansado e com um pouco de sono. Aquela cena parecia saída do filme The Wall do Pink Floyd. Tem uma parte onde pessoas sem rosto marcham em direção a uma máquina de moer carne. Resolvi sair dali e procurar outro lugar.

Pesquisei pelo Google maps e havia marcação de um outro restaurante contornando o mesmo quarteirão. Só que chegando lá não havia nada além de casas comuns no local indicado. Continuando o contorno do quarteirão, um boteco com uma mesa de bilhar. Parecia um daqueles pesadelos onde você tenta chegar num lugar e nunca consegue. Um pouco mais distante no mapa, um "bistrô" que abria só às 20h. Sem chance, vou ter de enfrentar a fila dos robôs sem rosto.

Voltando lá, tinha diminuído pela metade. As pessoas que estavam na minha frente me disseram: _ Você não precisa esperar, pode passar na frente. _ Não, tudo bem, eu espero. Fiquei imaginando por que cargas d'água eu deveria passar na frente das pessoas da fila. Mas fiquei sem jeito de perguntar. Em seguida o casal de donos me viu no fim da fila e veio falar comigo: _ Olha, ele não "faz parte". Não precisa esperar, pode passar na frente. _ Mas isso não é uma fila para a comida? _ Sim, mas não precisa esperar eles, é bastante gente. _ Mas as pessoas não estão aqui na fila para pegar a comida? Pois eu também, eu espero. Não tem problema. Continuei sem entender nada.

Depois que coloquei a comida no meu prato, pedi para dividir a mesa com um dos padronizados. Vi que ele estava quase terminando, e todas as outras mesas que eu tinha visto tinham pessoas também. Novamente o dono me viu e veio falar comigo: _ Olha, se você quiser, tem uma mesa vazia ali no cantinho, você pode sentar ali. _ Não, tudo bem, já estou sentado aqui. _ Tem certeza? _ Sim.

Novamente fiquei tentando entender qual seria o problema de eu dividir a mesa com um dos padronizados. Me concentrei na minha comida e mexi um pouco no celular, e quando levantei a cabeça todos eles tinham sumido. Isso tudo misturado com o sono tornava aquilo tudo muito surreal. Fiquei imaginando se comendo a comida padronizada eu de repente ia olhar para minhas roupas de ciclista e descobrir que tinham se transformado no uniforme igual dos robôs. Comida boa por sinal. Não consegui identificar exatamente o que aquelas pessoas estavam fazendo ali além de me aterrorizar, porém pelas conversas sobre uso de táticas, parecia treinamento de vendedores. Ou então de pastores evangélicos.

No café da manhã no dia seguinte foi mais ou menos a mesma situação, e eu não via a hora de sair daquela cidade pesadelo de um único hotel, único restaurante, único prato, com um exército uniformizado.


Este site é basicamente um lugar para descarregar meus pensamentos sobre os mais variados assuntos que me interessarem. No momento se trata de viagens de bicicleta sem marcha e fixa. Você pode falar comigo escrevendo para contato_autor@bus142.net