Uberaba a Jardinópolis
"Ride it Out"
Na minha planilha, neste dia eu tinha planejado ir até São Joaquim da Barra, o que daria um percurso de 103km, menor que a média diária que tenho feito. Só que para o dia seguinte, na chegada a Descalvado, teria de pedalar 174km de uma vez. Isso porque estava contando com um dia descanso em Descalvado, visitando parentes. Embora já tenha feito treinos com essa distância e até maiores, pensei que seria melhor esticar o percurso para além dos 103km para aliviar o dia seguinte.
Uma das razões para isso foi o fato de estar me sentindo bem fisicamente. Neste quinto dia, pela primeira vez na viagem, eu me senti menos cansado do que no dia anterior, apesar dos percursos serem semelhantes e não ter tirado nenhum dia de descanso ainda. O corpo está se adaptando e o cansaço está ficando para trás. Estou começando a sentir a confiança de que conseguirei seguir a planilha até o final dentro do prazo previsto e talvez até mais cedo.
Apesar de todo esforço diário que tenho feito, interessante observar que não tenho dormido mais como eu esperava. Inclusive, tem sido comum acordar de madrugada para ir no banheiro e depois ficar me virando na cama tentando voltar a dormir. Achava que esse esforço resolveria minha insônia, mas não. Inclusive hoje eu levantei tarde porque fiquei muito tempo acordado de madrugada. Acabei saindo quase 8h da manhã. O ideal pelo que tenho observado é sair assim que o dia clarear e ter 80% do seu percurso terminado antes do almoço. Rende bem mais assim, em parte pela temperatura mais amena.
Desde o dia anterior, vinha sentindo um barulho estranho na bicicleta, que com o tempo identifiquei vir da catraca. Fiquei com receio de ser algum rolamento quebrado e parei em uma pequena cidade chamada Guará para passar em alguma bicicletaria e também almoçar. Interessante que, segundo o Google maps, não havia bicicletaria alguma na cidade. Porém, como eu ia acreditar nisso, numa cidadezinha de interior dessas? Entrei e fui perguntar para os habitantes. Logo percebi inclusive, que a cidade era cheia de pessoas andando de bicicleta. Depois me contaram inclusive que é chamada "a cidade da bicicleta", onde não faz muito tempo que poucas pessoas andavam de carro.
A primeira bicicletaria que encontrei foi uma de garagem, do senhor Washington. Muito educado, ele me disse que aquele barulho não era nada, só faltava mesmo lubrificação por conta da chuva que eu tinha tomado.
_ Essa catraca é coisa boa, importada! _ Tem certeza que ela está boa então seu Washington? Porque eu estou indo pra longe. Será que aguenta chegar até o Uruguai? _ Aguenta sim, pode ir tranquilo! Ela não tem jogo nenhum, olha só.
Não queria me cobrar nada, mas deixei pelo menos um trocado.
Na parada do lanche da tarde de hoje, em um posto de beira de estrada, o senhor que me atendeu foi muito simpático e interessado no que eu estava fazendo. Seu Ederson. Perguntou se eu não era casado, se a esposa não estava preocupada. Tenho namorada, eu disse, e ela fica preocupada sim. Conversa vai, conversa vem, perguntei também sobre se ele era casado.
_ O último relacionamento sério que tive faz tempo. Um dia resolvi comprar uma aliança de noivado. Quando mostrei para ela, vi que ela não gostou.
Seu Ederson disse que fazia muito tempo, mas você podia ver o ódio e ressentimento no rosto dele, na maneira que cerrava os lábios, franzia a sobrancelha e seus olhos soltavam faíscas.
_ Onde foram parar todos os gritos e sussurros na cama? Aquilo tudo não serviu de nada? Pela reação dela naquele momento, vi que ela não tinha gostado. Aí terminei. Uma vez quase voltamos, mas não deu certo.
Sinto muito, seu Ederson. Tantos de nós carregamos estórias tristes dentro de nós e ninguém sabe. Ainda assim, seu Ederson continua sendo uma pessoa doce e simpática, tornando melhores os dias das pessoas que atende na beira da estrada com o seu carisma. Como se ele estivesse se vingando do que a vida lhe fez, só que ao contrário. Quem dera ser forte como ele.
Chegando no hotel que eu tinha planejado, não muito distante de Ribeirão Preto, a recepcionista queria saber o que eu estava fazendo, de onde vinha, para onde ia. Quando contei, ela queria até chamar a televisão para me entrevistar. Até aqui já foram mais de 700km, e as pessoas começam a ficar realmente impressionadas. Interessante que este foi o hotel mais barato e mais chique que fiquei até o momento. Tinha até garagem privativa para meu quarto com controle eletrônico no portão. Ainda assim, minha bicicleta dormiu no quarto comigo, tenho ciúmes.
Vou agora fazer uma confissão de algo que não tinha comentado com ninguém ainda, nem com a namorada que falo todo dia. Lá pelo meio da tarde do segundo dia, senti um tipo de puxão no joelho direito. No dia seguinte, comecei a sentir dor no lado esquerdo do músculo que chega no joelho direito. Era uma dor tal que ao fazer força para pedalar com a perna direita, doía muito. Eu não podia mais ficar de pé na bicicleta em uma subida, apoiando com essa perna.
Logo no início da viagem, pensei. Será que vai botar tudo a perder? Terei de cancelar? Mas insisti, me adaptando para fazer mais força com a perna esquerda e indo mais devagar. Essa é uma grande vantagem de pedalar clipado, para a qual eu não tinha atentado: você consegue pedalar até com uma perna só se for necessário. Então fui compensando a falta da força na descida da perna direita com a puxada da perna esquerda.
A experiência mais próxima que tive de esportes de alto nível de exigência foi com o jiu jitsu, que pratiquei durante muitos anos. Lá me acostumei a ver que o atleta de alto nível quase sempre carrega algum tipo de lesão. Melhora de uma mas já tem outra. Por uma combinação de amor, obsessão e vício, acaba nunca dando tempo suficiente para o corpo se recuperar por completo. É fácil para quem estar fora rotular aquilo como não saudável. E de fato, esportes de alto nível tendem a não ser algo muito gentil com o corpo do atleta. Porém, o que se alcança de significativo na vida sem uma dose de obsessão?
Então eu resolvi tentar insistir com cuidado para ver até onde ia. No primeiro dia da dor foi ruim, mas hoje já estava mais suave no início do dia e lá pelo fim do dia tinha passado! Mas por outro lado, agora estou com uma leve dor na mão direita, que sinto quando faço o movimento de apertar. Mas deve passar logo, e me preocupa muito menos que a dor anterior que já passou. Junto à galera do cicloturismo que fala inglês, quando alguém menciona uma lesão, tem uma frase que costuma ser dita: "ride it out". A tradução seria mais ou menos assim: "pedale até passar". Dessa vez funcionou!
Este site é basicamente um lugar para descarregar meus pensamentos sobre os mais variados assuntos que me interessarem. No momento se trata de viagens de bicicleta sem marcha e fixa. Você pode falar comigo escrevendo para contato_autor@bus142.net